O poeta gaúcho Mario Quintana, cujo centenário se comemorou no ano passado, foi se tornando, a partir dos anos 1960, cada vez mais conhecido e cada vez mais apreciado por um número maior de leitores - o que sua morte, em 1994, apenas reforçou. Foi por isso, e em respeito a sua vasta obra, que a Editora Globo passou a reeditá-la, a partir de 2005, de modo sistemático, na Coleção Mário Quintana, coordenada por Tânia Franco Carvalhal, que responde, nesta Nova antologia poética (17º. título da coleção, 220 pp.), também pela bibliografia e pela cronologia. O volume conta, ainda, com um alentado prefácio do poeta Eucanaã Ferraz.
A extensa obra de Mario Quintana não é fácil de classificar, por ter adotado todas as formas da poesia verbal, do soneto ao poema em prosa, passando pelo verso livre. Se isto é verdade para a obra em geral, é ainda mais verdade para uma antologia.
Mario Quintana é filho do modernismo de 1922. Daí o coloquialismo, a variedade formal, a ironia, a urbanidade. Não por acaso, seu estilo tem algo de Bandeira, mas também de Drummond. Ao mesmo tempo, deles se afasta, e também se afasta do próprio modernismo (ao menos sob um aspecto), ao eliminar o ceticismo que o marca. Quintana é um poeta que crê na poesia. Quintana tem na palavra poética uma amiga e uma aliada. Essa aliança, ele a transmite a seu público, que não tem, portanto, de “lutar” para lê-lo, como com os demais poetas modernos, em graus variados de atrito com as asperezas do texto. Não há asperezas em Quintana. Sua suavidade, porém, é temperada pela lucidez.
Há, na verdade, uma iconoclastia suave em Quintana, apesar de iconoclastia e suavidade não serem comumente miscíveis. Daí se começa a perceber onde está sua arte. Pois há poetas em que a arte é evidente, como na sintaxe particular e particularmente dura de Cabral. Já em Quintana, como em Bandeira, a poesia está lá, sabe-se que está, mas não se sabe facilmente localizá-la, em meio a versos que parecem meras frases, ou em meio a uma poesia que parece uma prosa entrecortada. Já no primeiro poema desta antologia, “Aula inaugural”, temos, talvez não por acaso, uma verdadeira aula de sua poética. “É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na guerra do Paraguai... / Mas eram bem falantes / E todos os seus gestos eram ritmados como num balé / Pela cadência dos metros homéricos. / Fora do ritmo, só há danação. / Fora da poesia não há salvação.” O poema começa com uma longa frase coloquial, e logo introduz a idéia de ritmo (“eram ritmados”). Em seguida, realizando a idéia de ritmo, há um perfeito decassílabo heróico, que fala, ora, de “cadência”, de “metro” e de “homérico” (“Pela cadência dos metros homéricos”). Então o ritmo torna-se, ele mesmo, o sujeito (“Fora do ritmo, só há danação”), para que, afinal, tudo se desdobre na própria poesia: “Fora da poesia não há salvação”. Acontece que isto é uma paráfrase de um dos mais duros dogmas católicos, “Fora da Igreja não há salvação”. Em suma, de um começo coloquial, falando meio ao acaso da Ilíada, pouco a pouco se afunila, sem que se perceba, para versos metrificados que falam do ritmo, para culminar numa profissão de fé na poesia que é, ao mesmo tempo, um destratar de um dogma religioso. Quintana pode ser suave, pode parecer leve, mas nada tem de ingênuo.
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